"não pertenço a nenhum partido, não pertenço a nenhum grupo, inclusive a nenhum grupo de intelectuais, não respondo a nenhum credo, não participo de qualquer militância, não sou militante de coisa alguma, apenas de ideias". Milton Santos

01/08/2011

Josué de Castro mais que atual

Nos 100 anos do nascimento de Josué de Castro, comemorados em 5 de setembro, confirma-se sua atualidade.
Em discurso sem data precisa (entre 1952 e 1956, após a Segunda Guerra Mundial) e local onde foi proferido, segundo Anna Maria de Castro, disse Josué de Castro: “Há dois caminhos à nossa frente: o caminho do pão e o caminho da bomba. É preciso escolher rápido. Eu quero simbolizar pelo caminho do pão, este da justiça social, para dar pão a todas as pessoas do mundo, evocando o banquete da Terra para os dois terços que estão à margem, que não recebem senão em alguns intervalos algumas migalhas das mesas dos ricos. É preciso que nosso mundo nos integre verdadeiramente. Eu acredito que já é passado o tempo em que as pessoas pobres podiam se conformar segundo a frase das Escrituras: ‘Aos pobres é reservado o reino dos céus’. Agora, devemos pensar que aos pobres deve também ser reservado o reino da Terra, pois a Terra é para todos os homens e não só para um grupo de privilegiados. E se não trabalharmos por toda parte com energia, para nos desviarmos do caminho da bomba, seremos uma vez mais expulsos da Terra, perderemos não apenas o reino dos céus, mas também o reino da Terra. (Josué de Castro e o Brasil, Ed. Fundação Perseu Abramo, pp.124-125, 2003). “Não se chegará jamais à paz com um mundo dividido entre a abundância e a miséria, o luxo e a pobreza, o desperdício e a fome. É preciso acabar com essa desigualdade social” (Op. cit., pp. 121-122).
Meio século depois, terceiro milênio, século XXI, a humanidade não escolheu o caminho do pão, embora sua urgência. É preciso escolher rápido, dizia Josué de Castro. As bombas, o terrorismo, a dominação pelas armas, o armamentismo, as guerras injustificadas estão aí, presentes, todos os dias, inclusive no Brasil, onde a violência, a das grandes metrópoles, a dos assassinatos no campo, do morticínio de jovens, está na estatística e nas manchetes diárias.
O Reino da Terra, simbolizado no caminho do pão, isto é, “da justiça social, para dar pão a todas as pessoas do mundo”, não chegou aos pobres e miseráveis. Chegou, sim, o caminho da falta de pão, da exclusão social, junto com a concentração de renda e a crescente distância entre pessoas, povos e nações.
Em entrevista na Conferência de Estocolmo, 1972, Josué de Castro fala do meio ambiente. (A Conferência, segundo ele, foi a reunião de Estados soberanos e poluidores): “A poluição é uma doença universal que interessa a toda humanidade, mas existem tipos de poluição diferentes no mundo inteiro. Os países ricos conhecem a poluição direta, física, material, a do ambiente natural. Os países subdesenvolvidos são presas da fome, da miséria, das doenças de massa, do analfabetismo. O homem do Terceiro Mundo conhece essa forma de poluição chamada “subdesenvolvimento”. (...) Os países subdesenvolvidos vivem numa economia de dependência. Todos eles são produtores de matérias-primas e de produtos básicos exportados para os países industrializados. Os Estados Unidos consomem 75% de toda a produção do continente latino-americano. (...) A riqueza dos trabalhadores norte-americanos só existe graças à exploração dos trabalhadores e camponeses em via de desenvolvimento, graças às condições miseráveis e desumanas em que estes são mantidos. (...) O desenvolvimento traz consigo, de um lado, suas riquezas, suas novas fabricações e, de outro, seus dejetos. O Terceiro Mundo está no lado dos dejetos. (...) (Os países subdesenvolvidos) estão preocupados porque o subdesenvolvimento que sofrem é a secreção de um tipo de desenvolvimento concebido sem respeito pela natureza e no qual o homem não passa de instrumento da produção.” (Entrevista de Josué de Castro à equipe Mundo Unido em junho de 1972, in: Josué de Castro e o Brasil, Ed. Fundação Perseu Abramo, pp. 153-154, 2003).
Josué de Castro parece estar a falar e escrever em 2008. Os temas de 1972 são praticamente os mesmos de hoje: o Terceiro Mundo com um bilhão de pessoas passando fome ou sofrendo de desnutrição; a OMC (Organização Mundial do Comércio) comandada pelos países industrializados, querendo impor, e impondo, suas regras comerciais, especialmente na produção e comercialização de alimentos e produtos agrícolas; os EUA querendo integrar os países americanos através da ALCA para proteger seus interesses econômicos; a distribuição de renda e riqueza hoje ainda mais desigual e injusta que então; e o neoliberalismo, a novidade das últimas décadas, exacerbando o mercado como absoluto e o consumismo (Dizia Josué na entrevista referida: “Nos Estados Unidos, podemos ler à entrada de um supermercado: ‘Se você não sabe o que quer, nós o temos’); a dominação dos países ricos, desenvolvidos, sobre os países pobres, subdesenvolvidos, ou como se diz hoje, em desenvolvimento, ou emergentes.
Com a queda do muro de Berlim, a partir dos anos noventa, uma única visão de mundo e de economia tornou-se hegemônica, como em nenhuma outra época da história. E prega que o lucro está acima de tudo, não importando a devastação da natureza e do planeta, prega que o mercado e o consumo são o motor de tudo, sem olhar o homem e a mulher, as relações sociais, o bem-estar espiritual, a cultura de povos e populações. Assim, a fome torna-se um subproduto inevitável, indesejável talvez até para os ricos, para a qual, porém, não há solução nem remédio na lógica do sistema.
Por isso, está mais que nunca colocada a proposta e a exigência da construção de um ‘outro mundo possível’, com um projeto de desenvolvimento democrático-popular, que questione as bases do sistema capitalista, proponha a inclusão social, a participação popular e a democracia. São necessárias, sem dúvida, medidas e soluções ao mesmo tempo emergenciais, para enfrentar o problema imediato da fome, quanto principalmente estruturais, que ponham em xeque os fundamentos do modelo de sociedade e implementem um outro projeto de desenvolvimento, ‘sustentável com justiça social’. Pois, como pensava Josué de Castro, “o subdesenvolvimento é um subproduto do desenvolvimento; (...) e o subdesenvolvimento não é conseqüência de uma diferença na rapidez do desenvolvimento entre o país desenvolvido e o subdesenvolvido, mas de uma distorção realizada no país, hoje subdesenvolvido, pelo sistema colonial. O país que submete um outro ao seu domínio procura dirigir-lhe a economia tendo em vista atender aos interesses do país dominante, impedindo que o dominado se volte para o atendimento das necessidades de sua população” (Op. cit., pp. 76 e 80). Um projeto de desenvolvimento democrático-popular supõe e pressupõe autonomia, soberania, produção, comercialização e abastecimento antes de tudo voltados para o mercado interno, domínio tecnológico, atendimento das necessidades e interesses da maioria da população.
Tomar a decisão de acabar com a fome, a miséria e a exclusão social como questão de governo e até de Estado não é, pois, apenas questão de propor e implementar políticas sociais públicas, mas sim questão de mudar o modelo econômico, social, cultural que produz a fome. E não apenas no Brasil, mas no mundo. Por isso o esforço do governo Lula ao propor e implementar o Fome Zero e um conjunto de políticas sociais construtoras da cidadania e de melhor distribuição de renda, uma política econômica voltado ao mercado interno de uma nação soberana, assim como o fortalecimento da UNASUL, o MERCOSUL, a criação do G-20, como pólos formuladores e articuladores de um contraponto ao hegemonismo dos países ricos.
É preciso matar a fome de pão quanto saciar a de beleza, como costuma dizer Frei Betto. Se isso já era verdade e era dito por Josué de Castro há mais de meio século, mais se faz necessário e urgente hoje no mundo globalizado.
Josué de Castro vive, em suas análises, idéias e em seu sonho. Josué de Castro vive em nós que repercutimos suas análises, cultivamos suas idéias e acalentamos seu sonho: acabar com a fome no Brasil e no mundo.
Não se resolveram ainda alguns dos problemas básicos da humanidade. Josué de Castro, profeta do seu tempo, continua sendo-o do nosso.


SELVINO HECK
Assessor Especial do Presidente da República 

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